domingo, 3 de agosto de 2008

Desbravando as paisagens semi-áridas das serras de Caicó.

Prezados Amigos;
Apresento abaixo uma carta enviada pelo amigo Solón Almeida, presidente da ONG a qual faço parte Sociedade Espeleológica Potiguar - SEP, onde ele descreve com a mais profunda emoção a descoberta de uma nova carverna situada na Serra da Cruz, município de Caicó/RN.
Uma aventura marcada pelo encanto da descoberta, e desencanto da destruição humana.
Esta carta soa, inclusive, como um alerta a todos acerca do que pode vir a ocorrer nesta Serra em caso de permitida a lavra por parte do DNPM e dada a licença ambiental, por parte do IBAMA e IDEMA para que seja explorado Ferro naquela região.
Atenciosamente;
Gustavo Szilagyi
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Povo das Cavernas,

Viemos de um sertão perdido entre serras. De uma solidão que se atinge por estradas de pedras afiadas, por onde somente passam os pobres espíritos perdidos dos que um dia foram grandes homens, cangaceiros ou desbravadores. Viemos de um sertão entre a Caridade e a Dominga.

Hoje, especialmente, escrevo de uma trincheira cavada em minha alma. Um buraco raso que, após o dia de quarta, não sei se me servirá de abrigo ou - simplesmente - como uma cova. Tenho pena de mim, porque sou homem e, nessas horas, tudo que sei é que minha capacidade de sofrer e fazer sofrer é muito maior do que possibilidade de libertar. Em um mundo de cavernas, queima um castelo chamado Serra da Cruz. E aquele baluarte, uma torre da Serra da Santana, está, neste momento, sendo vergonhosamente desmontado. Tenho vontade de desistir. É uma luta perdida. Mas todo brado é uma forma de vitória. Somos meia dúzia de maltrapilhos vestidos com macacões rasgados empunhando lanças contra um exército de motores. Eu queria ter fé. Mas tudo que tenho é o atrevimento. Findo da mesma forma: agradecendo a Deus.

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A viagem de quarta à Serra da Cruz foi uma das mais excepcionais do ano. Fantástica, em todos os aspectos. Rostand e Jeová encontraram-se comigo em Caicó na noite de terça. Uma dormida safada numa noite curta. O dia se fez dia quando a noite ainda era noite. Nos levantamos pela madrugada e seguimos para o mercado. Pó-de-ouro e outras coisas as quais somente Caicó, no Centro, no mercado, ensinam. E quando em Caicó, nunca se esqueçam do mercado...

Superando todas as minhas expectativas, conseguimos encontrar o velho Nelson Carneirinho, gravar suas histórias, escutar muita coisa louca. Ele estava na vagem do rio, uma vagem perdida entre antigas algarobas e muros de pedra, um lado da Fazenda Caridade que eu não conhecia. Fantástico. A parte histórica, em campo, parece assim está superada. Agora é trabalho para Rostand. Agora ele vai ter muita cana para moer, para fazer caldo de histórias.

Ao final, perguntando sobre as antigas casas, as senzalas, Carneirinho falou que estavam na Inês Batista. E lá fomos nós. Mas, pelo caminho, a estrada foi ficando maior, o que era uma légua, findou virando duas, três, quando num velho mata-burro da caatinga, nos vimos - perdidos, para variar - por trás da Serra da Cruz, aquela mesma serra que, nas viagens passadas, meu carro não conseguiu subir e, de onde, eu e Marcelo, em junho, quase desabamos depois de uma cagada minha... Caramba! Ali, era um desafio da traquinagem contra o perigo; da máquina contra a ladeira. A gente se embrenhou a subir pelo lado oposto, sem saber muito o que havia doutro lá por cima.

Entretanto, para a surpresa geral, o carro subiu. Engasgou um pouco, escorregou aqui ou acolá, mas, em uma dúzia de minutos o GPS já marcava seiscentros metros de altitude!!! Estávamos na chã, rodando por cima da serra, numa estrada aberta pela pesquisa da mineração de ferro que está aprontando uma lavra que consumirá uma das paisagens mais belas de Caicó.

Destino trágico saber antecipadamente do fim. Estranho é o ser humano, que define a autoconsciência pela noção de que um dia morrerá. Eis as trágédias vistas na Serra da Cruz.

Topamos com o pessoal da mineração e Rostand desceu para, numa daquelas lorotas que só ele maneja como ninguém, indagar: "Ei, estamos perdidos... vocês sabem pra que lado fica uma tal de Caridade, uma comunidade rural daqui...?" Falou fazendo uma cara de leso, um sorriso lesado, o que induziu os homens a nos mostrarem educadamente a porta de saída: voltar pelo mesmo caminho e pegar a reta caindo fora de lá. Mas, a partir dali, perdemos o álibi. Agora era esconder o carro no meio do mato e se embrenhar numa vereda procurando cavernas nas próximidades da pesquisa da lavra de ferro.

Fizemos aquele almoço miojético regado a nescafé e adoçado com a goiaba nossa de cada dia, pusemos os velhos macacões e pegamos a mata. Logo estávamos quebrando o mato nos peitos. O GPS jogava prum lado, a gente mirava no mármore, a trilha abria e fechava em cipós e unhas-de-gato. Jeová seguia à frente, a inclinação da encosta da serra chamava um tombo, sobravam escorregões em passos incertos. Até que chegamos em uma cerca, dali seguimos mais um pouco, livramos árvores e arbustos, quando, após uma subida, descortinou-se um imenso afloramento de pedra cinzenta, comida pela chuva, o mármore da encosta sul da Serra da Cruz, a coisa mais bela que uma pessoa de pouco juízo poderia ver numa tarde de quarta embrenhado naqueles matos. Logo, o grupo todo se espalhou e se pôs a procurar uma entrada em meio às pedras. Encontramos uma, repleta de pequenos poços, uma caverninha, a primeira do dia! Exploração rápida, poucas fotos, seguimos na mesma tocada... foi quando Jeová gritou: "Aqui tem uma, das boas!" Mochilas postas na pedra, macacões suados fechados, luzes acessas revelaram, logo dali, da boca, um corredor sinuoso largado em blocos caídos e muitos, muitos escorrimentos e cortinhas desenhados no mármore. Cavernão massa! Nos pusemos a fotografar enquanto Jeová ia puxando a fila. E sempre dizendo: "Vai embora o corredor!". Caramba, por aquela eu não esperava, cavernão do caralho, nas portas do céu! Muitas fotos, muitas visões da obra divina. Ficamos lá dentro por mais de uma hora.

Quando saímos, fizemos uma prospecção rápida no entorno, mas não encontramos nada relevante. Contudo, ainda há muito mármore, muita coisa para se ver, com certeza ainda temos muita coisa a fazer ali.

Na volta, topamos a saída do mato bem na clareira aberta pela equipe de sondagem da mineradora. Para nossa sorte, os caras não tavam naquele local, o trator ainda estava ligado, motores funcionando, podíamos ouvir suas vozes do outro lado. Descemos em silêncio, prontos para correr, certos de que estávamos a um passo de uma confusão. No caminho, um rastro de destruição. Árvores caídas, coisas mortas numa paisagem do paraíso. Estranha a contradição da condição humana.

Voltamos ao carro e seguimos à Fazenda Dominga. Mais história, outros cangaceiros, muita coisa louca lá também.

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A viagem de quarta à Serra da Cruz foi um marco. Agora que subimos a (invencível) ladeira de barro, meu carro, praticamente lavou a alma (e ficou precisando de uma lavagem geral, também...). Novas metas: retomar uma sessão fotográfica dentro da Caridade (item da pauta justificadamente não cumprido nessa última viagem); mapear uma ou duas cavernar naquele mármore e terminar a prospecção procurando novas cavernas lá; e terminar o mapa da Caridade... putz!

Em agosto pretendemos fazer duas saídas a campo para tentar ver se conseguimos concluir esse (apertado) cronograma. Não sei como vai ser nosso relacionamento com os caras da mineradora nos nossos próximos encontros... na boa e na real. Mas a gente também não pode estressar muito, não. Tem que fazer cara de besta, correr ou, simplesmente, trocar bufete, mesmo! Ou seja, se virar como puder! Uma coisa é certa, a Serra da Cruz está com seus dias contatos. E, como fala Marcelo: "Só existem dois tipos de espeleólogos: os que se vendem e os que continuam na luta". A Serra da Cruz só tem a nós.

A todos os que quiserem ir, não garanto a saúde de ninguém. Antes havia o risco das aranhas, das passagens apertadas pelo rio da caverna, do frio na água. Agora, progredimos, estamos correndo o risco de levar um tiro... Mas uma coisa eu garanto, as pessoas que participarem desse projeto, serão as últimas a vivenciar uma das visões mais mágicas do Seridó: a Serra da Cruz e suas cavernas em mármore, lugar de cangaceiros e sonhos perdidos. Ainda morrerei pensando que vale, sim, o risco. A todos que quiserem se voluntariar, um lugar sem limites pede gente sem limites, aviso a todos da próxima saída.

Valeu,
Solon.