Tomado por plantas aquáticas e a lama, Pataxó não terá como escoar as águas do inverno
Todo o ano, mais ou menos por essa época, a população de Ipanguaçu, no Vale do Assu, deixa de plantar e olha para o céu. E não se trata de um ritual de reflexão. O povo, que é muito religioso, espera sempre pelo pior – as enchentes. Em Ipanguaçu, água pelos joelhos não é novidade. Quando ela não vem do rio Assu, usa o pequeno Pataxó como porta de entrada.
No ano passado, foi pior. Junto com as cheias do Rio Assu, Ipanguaçu enfrentou também seu maior pesadelo: o transbordamento do que um dia já lembrou um rio, mas que hoje, por causa do severo assoreamento, não serve nem como leito natural para as águas – o Pataxó.
Quem mora lá sabe. Quando o açude do Pataxó sangra 80 centímetros de lâmina d’água, os habitantes de boa parte da cidade já estão com as casas inundadas. Impedida pela terra e a densa vegetação existentes no leito do rio, a água procura o caminho mais fácil - as ruas de Ipanguaçu.
É por isso que, todo o começo de ano, o pequeno agricultor dali pára de plantar o feijão, o milho e a melancia de subsistência e olha para o céu. Plantar em fevereiro pode significar perder tudo em março ou abril. Afinal, milho se colhe com 75 dias; feijão com 60 e mamão com 90. A tempestade, pelo calendário das chuvas no Rio Grande do Norte, chega antes.
Este ano, com o anúncio, pelos meteorologistas, de um regime normal de chuvas, o sinal de alerta já foi dado em Ipanguaçu. Sem um período de deficit, os reservatórios já ultrapassaram os 80% de capacidade.
Nesse contexto de má gestão dos recursos hídricos, o que já foi uma graça para muitas comunidades do interior – o sangramento dos açudes – virou um problema não só em Ipanguaçu, mas em vários municípios do Estado.
Já quando o prejuízo vem com a força das águas do Rio Assu, quem perde em Ipanguaçu são os grandes projetos agrícolas, como o administrado há décadas na região pela gigante americana Del Monte, líder das exportações de banana brasileira para a Europa.
Em 2004, os embarques nacionais da fruta renderam à empresa US$ 14,9 milhões - 55% do total foram destinados à União Européia. Depois das enchentes de 2004 e 2008, a Del Monte viu seus 120 containeres exportados semanalmente caírem pela metade. Resultado do fechamento de cinco fazendas na região (uma delas experimental) e a demissão de 1.300 empregados. Só em Ipanguaçu foram 700 demissões.
Os ipanguaçuenses sabem que, historicamente, o modesto Rio Pataxó, com seus 21 km de extensão, é um problema igualmente grande para a população, pois suas cheias deixam crianças sem aula, escolas destruídas e aniquila o pouco que as pessoas humildes têm em suas casas. Aumenta endemias e pulveriza pequenas plantações de subsistência.
Segundo os moradores mais antigos de Ipanguaçu, as grandes enchentes provocadas na cidade pelo Rio Assu apareceram em anos como 1964, 1985 e 2008. Mas, desde que o Pataxó deixou de ser rio para se transformar em pântano, a cidade sofre com inundações praticamente a cada dois anos. Elas aconteceram em 2002, 2004 e – a mais grave – no ano passado. Se a culpa é ou não da instalação dos grandes projetos exportadores na região, como o da banana e do mamão, que alteraram a topografia do lugar, isso já não importa mais.
“A saída agora é resolver a questão com um projeto estruturante”, diz o engenheiro Rômulo Macedo, conhecido por sua atuação de anos junto ao projeto de transposição do Rio São Francisco. A empresa que ele integra ganhou a licitação para elaborar o projeto executivo da construção de um dique em Ipanguaçu, pegando uma parte do Rio Assu e uma parte bem menor do Pataxó. A intenção, na verdade, é resolver de vez a ameaça que vem do Rio Assu.
Soluções para o assoreamento não passam de promessa
Para o diretor geral do Idema, Eugênio Cunha, olhando para o trágico panorama do assoreamento dos rios do RN, o caso da Bacia do Piranhas-Assu é o que certamente desperta para a necessidade de uma intervenção urgente.
“Vamos continuar investindo em monitoramento de imagens por satélite para montar nossas estratégias”, disse Cunha, recentemente, durante um encontro nacional sobre monitoramento georeferenciado, em Natal.
Na semana passada, o secretário de Recursos Hídricos e do Meio Ambiente do Estado, o vice-governador Iberê Ferreira de Souza, anunciou durante a IV Reunião de Análise e Previsão Climática para o Semi-árido Nordestino, a implantação de uma rede de monitoramento automático das águas do RN. O sistema seria composto por mais de 50 estações hidrometeorológicas em todo o Estado e receberia um investimento do Governo da ordem de R$ 6 milhões.
“Com essas estações – disse Iberê – teremos informações em tempo real de água nos nossos reservatórios, além de dados pluviométricos e da vazão dos rios”.
Até março deste ano, o plano do governo estadual é ver 11 estações em funcionamento nas bacias Apodi-Mossoró e Piranhas-Assu, que receberão as águas do Rio São Francisco.
Na segunda etapa, mais 40 estações hidrometeorológicas seriam implantadas pelo Estado até 2010, um investimento de US$ 3,3 milhões, equivalente a mais de 6 milhões de reais.
Tudo muito bom e bonito. Mas, enquanto isso, em Ipanguaçu, o projeto executivo para a construção de um dique, ao custo de R$ 700 mil, gera mal estar na cidade. Gente como o atual prefeito Leonardo da Silva Oliveira e o ex, José de Deus, acham que, com muito menos dinheiro do que o aplicado no projeto executivo, os 21 km do Rio Pataxó já poderiam estar dragados e seu leito aprofundado em 1 metro, voltando a servir como canal de escoamento toda vez que o açude do Pataxó sangrar.
Segundo o prefeito Leonardo da Silva Oliveira, do PT, o custo da obra – já orçada – oscila entre R$ 460 a R$ 500 mil reais. Ela compreenderia o trabalho de duas dragas, primeiramente livrando o Pataxó de sua densa vegetação subaquática e, depois, dragando o rio em mais 60 centímetros. “Isso não resolveria o problema das enchentes, mas pelo menos impediria temporariamente os estragos toda vez que acontece um sangramento do açude da cidade”, diz.
Mas quando o problema é o Rio Assu, não tem jeito – as enchentes são líquidas e certas.
Uma cidade conhecida por ilha
Sacramentinho é o nome de uma localidade em Ipanguaçu onde as crianças e os adultos ainda aproveitam o pouco do que resta de um rio. Plantados em casas humildes ao lado do Pataxó, eles não só se refrescam em suas águas, como bebem dela e lavam roupa. As crianças não são exigentes. Quando nasceram já encontraram o rio agonizante. E aprenderam a aproveitar do pouco de vida que lhe resta.
Por toda a Ipanguaçu foram construídas três passagens para que seus habitantes pudessem atravessar o Pataxó. A que existe em Sacramentinho lembra uma obra de drenagem da Caern, diferenciada apenas pela largura maior dos canos. O resto é vegetação subaquática. Com paciência ainda é possível encontrar alguns peixes. Eles estão todos no açude, cujo sangramento é o que infelicita os moradores de Ipanguaçu.
O agricultor Antônio Manaia nasceu ao lado do Pataxó onde viveu seus mais de 60. Ele lembra que o pântano ali se formou depois que os grandes projetos de fruticultura começaram a adubar suas plantações nos anos 80. “Foi então que esse matagal se formou sobre um leito cada dia mais raso”, diz.
Ao lado da casa de Antônio Manaia, um veículo de transporte repousa de cabeça para baixo à espera de uso. É um barco construído por parentes, útil toda vez que o Rio Pataxo, engasgado, começa a vomitar as águas do açude localizado a poucos quilômetros dali.
No ano passado, quando as águas do Rio Assu se encontraram com as do Pataxó, o velho e bom barco voltou à ativa. E é na frente da casa de Manaia, sobre o mesmo cavalete, que ele espera o dia em que o sertão vai virar água. Ou quando a cidade voltar a virar ilha.
Aplicação da verba não está definida
Segundo deputado Fernando Mineiro, presidente da comissão de Meio Ambiente da Assembleia, o Governo do Estado tem em caixa R$ 1 milhão de uma emenda parlamentar da deputada Fátima Bezerra para a realização de um “projeto estruturante” na região. Nesse caso, é o projeto executivo do dique em Ipanguaçu, de autoria do engenheiro Rômulo Macedo.
Em Ipanguaçu, há controvérsias sobre esse assunto. O ex-prefeito José de Deus diz que esse dinheiro deveria pagar o desassoreamento do rio Pataxó. O atual prefeito, Leonardo da Silva Oliveira, é da mesma opinião.
O município recebeu do presidente Lula verbas federais para a construção de mil casas populares depois das cheias de 2004. De lá para cá, só o dinheiro da emenda parlamentar de Fátima Bezerra foi liberado. E, em dezembro do ano passado, com 10 meses de atraso, chegaram R$ 20 milhões para reparar os danos causados pelas enchentes de 2008. O pedido do Estado beirava os R$ 100 milhões. Dos 20, apenas 4 serão destinados às obras, como a reparação de reservatórios e a reconstrução de pontes.
“Estamos desprotegidos se o Pataxó sangrar novamente”, diz o prefeito Leonardo da Silva.
“Além do mais, ninguém nunca viu um único técnico sequer fazendo medições ou passeando por aqui”, dispara o ex, José de Deus.
Perguntado durante uma reunião na cidade sobre os custos do dique, o engenheiro Rômulo Macedo estimou a obra em R$ 40 milhões. Semana passada, falando ao telefone de Recife à TRIBUNA, Macedo reformulou a estimativa. “Com os R$ 25 milhões acho que dá pra sair, tudo dependerá da altura do dique”. O projeto executivo, segundo informou, fica pronto em fins de maio.
Mas ele reconhece que a gestão da bacia Piranhas-Assu ajudaria decisivamente na questão das inundações.
“É preciso criar uma gestão que possibilite um volume de espera das águas, impedindo os problemas decorrentes da sangria do açude Armando Ribeiro”, observa. Um controle nesse nível já vem sendo feito no Brasil por comitês de bacias, onde representantes dos estados e comunidades envolvidas têm assento. Está muito longe de ser o caso do Piranhas-Assu.
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