domingo, 13 de janeiro de 2008

Chauí e o totalitarismo

Peço aos meus amigos a licença para publicar neste espaço um texto que foge a regra deste BLOG, criado especialmente para debater questões socio-ambientais.
Este texto que transcrevo abaixo é do jornalista Marcelo Coelho, membro do conselho editorial da Folha de São Paulo, onde o autor faz uma análise bem interessante, se não curiosa, da visão de Marilene Chauí sobre "autoritarismo" e "totalitarismo". Vale a pena ler.
Gustavo Szilagyi

Seria a distinção entre “autoritarismo” e “totalitarismo” uma invenção da direita, em tempos de Guerra Fria? A idéia básica é que regimes militares, como os do Brasil, Chile e Argentina, durante os anos 70, merecem a qualificação de “autoritários”, porque repressivos e antidemocráticos, mas não “totalitários”, porque não pretendiam, como o nazifascismo e o comunismo, impor normas a todos os aspectos da vida social. Falava-se, por exemplo, em “arte proletária” ou em “arquitetura nazista”, num modelo de família, de educação, típicas do fascismo, ou de um “novo Homem” a surgir a partir da revolução bolchevique... Ambições que os regimes militares não possuíam, apresentando-se, no mais das vezes, como interregnos emergenciais, necessários para preparar determinada sociedade à “volta” de uma “verdadeira democracia”.

Cito em seguida parte do depoimento de Marilena Chauí sobre os 30 anos da criação do Cedec, publicado na revista Lua Nova no. 71, de 2007. Quatro temas, segundo a filósofa, eram muito discutidos na época, e tiveram papel importante durante a formação do Cedec—um instituto de pesquisa e reflexão política, nos moldes do Cebrap, fundado em 1978.

O primeiro tema era a da crise de legitimidade do “sistema” –a estrutura de poder montada pela ditadura. O segundo tema era o do autoritarismo na América Latina. Eis um trecho do depoimento:

Havia um debate que, de alguma maneira, estava polarizado entre duas interpretações a respeito desse autoritarismo: seria ele uma resposta a uma necessidade histórica (política) ou a uma necessidade econômica (o surgimento do capital multinacional)? Pela esquerda, vinha a explicação econômica, através de Enzo Faletto (Flacso contra Cepal) e Fernando Henrique Cardoso (Cebrap), isto é, a teoria da dependência. Pela direita, partindo do sociólogo espanhol radicado nos Estados Unidos e ligado ao Departamento de Estado norte-americano, vinha a explicação política, isto é, a diferença entre autoritarismo e totalitarismo, posição que foi encampada por intelectuais brasileiros como Bolívar Lamounier, Celso Lafer e José Guilherme Merquior. (...)

[Segundo a teoria da dependência] o autoritarismo aparecia como conseqüência da fraqueza do capital nacional, que precisava de um Estado ditatorial para estabelecer a relação com o capital internacional. Por seu turno, Juan Linz dava-se como tarefa a defesa do franquismo. E para isso propunha uma tipologia para diferenciar o autoritarismo do totalitarismo, afirmando que este último é a forma política do marxismo e se distingue do autoritarismo porque é imóvel, sem contradições, fixado, de uma vez por todas, sob a forma da coação, da repressão, do supertrabalho e do domínio do Estado; sobretudo, é uma ideologia (entendendo-se por ideologia não o conceito marxista, mas a concepção de muitos sociólogos norte-americanos para os quais a ideologia é um conjunto coerente de idéias que explicam a totalidade do mundo e são defendidas por um partido político). O autoritarismo, em contrapartida, não é uma ideologia; é temporário, limita algumas liberdades, mas não todas, opera politicamente sob uma Constituição e com o Poder Legislativo etc. Na América Latina, havia autoritarismo como defesa do continente contra a ameaça do totalitarismo, isto é, do comunismo.

Lembro-me de ter lido Juan Linz na década de 80, mas não posso jurar sobre o que ele dizia ou não dizia. Acho muito estranho, entretanto, demonizar desse jeito uma tipologia perfeitamente razoável, estabelecendo diferenças entre regimes autoritários e totalitários. Isso não significa defender os primeiros.

Em se tratando de Marilena Chauí, tão próxima, naquele tempo, às críticas ao regime soviético formuladas pelo grupo “Socialismo ou Barbárie”, de Lefort e Castoriadis, a recusa a essa distinção é das mais inexplicáveis. Foi justamente o tempo em que o termo “totalitarismo”, antes utilizado apenas no contexto da direita na Guerra Fria, ganhou trânsito entre os intelectuais de esquerda. Quando se falava em “radicalização” da democracia, em movimentos sociais (contra a lógica burocrática dos partidos de esquerda), em certa “reinvenção” da política, uma das inspirações era o “Solidariedade” de Lech Walesa. O PT surgiu, nesse contexto, como uma espécie de “não-partido”, sendo acusado pela esquerda tradicional de “obreirismo”, “espontaneísmo”, falta de leninismo etc... E seria uma resposta de esquerda aos males da burocratização, do culto à personalidade, dos “desvios” e do... totalitarismo que imperavam no campo soviético.

Quando alguém como Marilena Chauí minimiza a questão do totalitarismo, ou pelo menos desconfia do termo, acho que está se esquecendo da própria história da esquerda, e do PT, dos anos 80 para cá.
Marcelo Coelho

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