segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Interior do RN vive escassez no abastecimento

Por Marcelo Hollanda
Repórter Tribuna do Norte
O caminhão pipa alugado pelo Exército anda lentamente pela BR 304 sob o sol escaldante dos últimos dias. Vagarosamente, ele corre no mesmo sentido da adutora Sertão Central Cabugi levando a mesma água do canal do Pataxó. Enquanto o caminhão vai atender uma pequena propriedade ou distrito da região, os quilômetros de tubulação da adutora foram construídos justamente para diminuir a desigualdade hídrica na região do Sertão de Angicos com água captada no açude Armando Ribeiro Gonçalves.
Uma desigualdade que não se reflete no nível das águas dos açudes, mas na sua gestão e na preservação dos mananciais. Em 2004, por essa mesma época, o sangramento dos maiores reservatórios do Estado promoveu o “carnaval das águas”. Era o fim da escassez de uma década. Os últimos quatro anos o regime irregular de chuvas baixou muito o nível dos açudes, mas não há uma viva alma no Seridó ou na região central do Estado que não acredite que chuva é só questão de tempo - tão certo como ela cai de cima para baixo.
O problema é bem outro. Para contá-la vamos recorrer a personagens unidos por um único laço: a pobreza. É por esse fio condutor que será possível mostrar, independentemente do nível dos reservatórios, o drama daqueles que nunca têm água na torneira, mesmo a poucos metros da água.
Águas do açude Itans estão poluídas

É quinta-feira e o calor abafado desanima logo cedo as famílias que moram nos arredores do açude de Itans, a poucos quilômetros de Caicó, no Seridó. Ali, o comentário geral é do homem que morreu ao pular do chapéu da construção usado para medir o nível das águas. Ele mergulhou e não voltou mais. Ficou preso no fundo do açude que já foi um dos mais importantes do Estado antes do surgimento das barragens Armando Ribeiro Gonçalves, Umari, Poço Branco e Gargalheiras. Foram precisos dois dias para resgatar o corpo. O segundo assunto das mulheres reunidas nas soleiras das portas é a advertência feita dias antes por um técnico da Caern para que as pessoas evitem tomar banho nas águas do Itans. “Ele disse que está tudo poluído com agrotóxico e pilha de rádio”, conta Maria da Paes Barbosa.
Como ela, as quase 30 famílias que ocupam pequenas casas nas proximidades do açude bebem água tratada da Caern liberada sempre nas segundas e terças para serem usadas até o final da semana. A água de tomar banho, lavar roupa e louça é retirada pela cooperativa dos moradores do Itans. “ Sabemos agora que essa água é imprópria até para o banho”, diz Maria da Paes. Má notícia para um casal de andarilhos, mãe e filho, que há dias estão na estrada sem uma gota de água. Antônio Aureliano e dona Raimunda saíram de Campina Grande, na Paraíba, com o vago objetivo de chegar um dia a Mossoró. Eles agora sabem que não poderão lavar as roupas ou se lavar no Itans - e permanecem parados, a poucos metros da água, pensando a quem pedir ajuda.
Dono de muralha sonha com um dia que chova muito
O nome de batismo dele é Manoel Germano da Silva, 72 anos, natural de Campo Grande, antigamente Augusto Severo, Oeste do Estado. Mas você pode tratá-lo por um título que nem ele conhece: dono de terras às margens do maior açude do Estado - o Armando Ribeiro Gonçalves.
Não é nada disso. Manoel nunca foi dono de nada e seu maior legado, que ele não deixará aos 14 filhos espalhados pelo mundo, é um cercado de mais de 300 metros construídos nos últimos três anos com restos de pereiro e jurema, amarrados com arame farpado, para proteger uma pequena área no coração do açude. A obra, monumental para um homem da sua idade, contou com a ajuda eventual de um filho e só. Guarnece uma pequena plantação de milho e feijão que, apesar de estar a poucos metros da água da represa, os braços já cansados do sertanejo não conseguem mais puxar com ajuda de baldes. “Eu nunca estudei e minha vida toda foi nisso aqui”, diz ele manejando a enxada contra o cascalho. A cerca também protege umas poucas cabeças de gado e cabritos que costumavam pastar por ali logo depois do sangramento da barragem, em 2004.
Um ano depois disso, quando a muralha começou a ser erguida, a grama nas margens do reservatório estava alta - bem diferente de como se encontrava na semana passada, raspada pelos dentes dos animais. Manoel Germano lembra que, em 2004, o Armando Ribeiro sangrou com 28 dias de chuvas. Se isso voltar a acontecer, é certo que a muralha construída por ele terá que ser desmontada rapidamente para não ser levada pelas águas. Como ficaria? Nesse momento, o velho faz uma pausa, soma vantagens, subtrai desvantagens e sapeca uma resposta surpreendente: “Eu preferiria mil vezes que voltasse a chover muito”. Nesse dia, sem a cerca que demorou três anos para erguer, o velho agricultor pelo menos veria brotar o capim e teria a terra novamente úmida para plantar.
O estresse do xerife da água

A 25 km de Caicó, pela RN 118, no Distrito de Lajinha, esqueceram de avisar ao “xerife da água” que a contaminação do Itans pode ser a causa provável de alguns dos seus aborrecimentos domésticos.
Raimundo Medeiros da Silva, o Raimundo Preto, cuida há oito anos da distribuição da água que chega nos carros pipa em tempos de racionamento - como agora. É, provavelmente, a pessoa mais odiada do distrito de 550 habitantes e uma pitoresca rua principal, toda calçada de paralelepípedos, onde a melhor coisa a fazer é ver o tempo passar. Há duas semana, a mulher de Raimundo, Maria Madalena de Jesus, a baiana, acordou com o corpo em chamas com uma coceira infernal nos braços e pescoço. Ao amanhecer estava cheia de pipocas, que o médico que visita regularmente o distrito atribuiu à água. Agora, ela anda passando uma pomada dermatológica sem qualquer resultado. Raimundo Preto, que suporta todo o tipo de xingamento na hora de distribuir as seis latas de 18 litros por família do caminhão pipa, também não tem uma vida nada fácil. Com um histórico de três paradas cardíacas e uma coleção de dezenas de pílulas para tomar todos os dias, ele diz já ter pedido as contas ao prefeito de Caicó Bibi Costa (irmão do deputado estadual e ex-governador Vivaldo Costa) mais de uma vez. “Mas a minha vida é esta desde quando Roberto Germano (anterior a Bibi) era o prefeito de Caicó: “Ser chamado de babão”, lamenta.
Na entrada do Distrito há duas caixas d’água onde deveriam estar a água tratada. A poucos metros, há mais uma caixa responsável por receber o conteúdo dos carros pipa alugados pelo Exercito. Recentemente, a lagoa que armazenava as águas do Itans, bombeadas para o distrito, começou a cuspir areia dos canos. Sem condições de bombear água dali, sob pena de queimar o motor da bomba, os moradores foram aconselhados a se resignar e esperar os carros pipa. Não é novidade para eles. Com um grande número de aposentados e agricultores, a vida de Lajinha sempre esteve intimamente ligada à falta de água.
Na entrada da cidade, onde habitualmente se reúnem para fiscalizar a natureza e falar da vida alheia, homens do distrito comentam que no ano de eleição as soluções aparecerão, e rapidinho. “É sempre assim”, diz o aposentado Silvestre Ambrósio dos Santos. “É nessa época que as adutoras e os açudes novos aparecem, até o dia em que as urnas são fechadas”. E acrescenta, fazendo um desdém com os lábios: “Depois disso...” Ironicamente, nesse momento, Raimundo preto localiza um caçote (um sapo) dentro da caixa que armazena água do Itans. “Pois é, o bichinho vive aqui”, explica. Estava morto.

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