sábado, 22 de março de 2008

ÁGUA DE CUIDAR

Prezados, recebi este texto de uma querida amiga do Rio Grande do Sul, a Carmelina Castro, e gostaria de dividir seu conteúdo com vocês. Trata de uma entrevista com a arquiteta e urbanista Marússia Whately do Instituto Socioambiental (ISA) falando sobre a situação da água em nosso país. É uma entrevista muito interessante, e que nos traz dados preocupantes acerca da qualidade dos serviços de abastecimento de água e esgotos em todo território nacional. Vale a pena ler.
Atenciosamente;
Gustavo Szilagyi.


Em novembro do ano passado, o Instituto Socioambiental (ISA) lançou um estudo sobre a forma como a água é usada e o esgoto é destinado em todas as 27 capitais brasileiras, inclusive Brasília. Nessas cidades viviam em 2004, ano analisado, 43 milhões de pessoas, o correspondente a mais de 20% da população. Alguns dados revelados pela organização não-governamental são assustadores. Porto Velho, em Rondônia, e Rio Branco, no Acre, atendem somente a 30% e 56% de sua população, respectivamente, com o abastecimento de água.
O mais díspar é que as capitais estão em plena região amazônica, que concentra 90% da água doce superficial disponível no Brasil. Algumas outras informações foram reveladas, na entrevista a seguir, pela coordenadora do estudo, a arquiteta e urbanista Marússia Whately.


Idec: O que é pior, não ter acesso a água porque ela simplesmente não está disponível, como acontece em algumas regiões do mundo ou não ter acesso por causa de problemas sociais e políticos, como no Brasil, que tem 12% da água doce superficial do mundo?
Marússia Whately: Na primeira situação, a gente está tratando de áreas onde, do ponto de vista natural, não existe água. Isso se desdobra num conjunto de relações culturais que as pessoas acabam tendo com a água. Muitas vezes elas são até muito mais conscientes do que quem tem água perto. Acho que a segunda situação é a pior delas - a falta de acesso pela ausência de infra-estrutura que não chega às pessoas, ou pelo fato de a fonte de água ficar inviabilizada. A tendência é que essa situação, normalmente relacionada ao desperdício e à poluição, aumente mundo afora. Os próprios usos que o homem faz da água inviabilizam seu acesso a esse recurso.


Idec: Na Amazônia, região com abundância de água, estão as cidades em que a população tem menos acesso ao fornecimento do recurso.
MW: Exato. A realidade das capitais da região Norte tem uma relação muito grande com essa abundância de recurso e falta de cuidado. A água sempre existiu, então não há grande preocupação. Mas um dos objetivos do ISA é mostrar que o consumo de água vem aumentando enormemente. Nos últimos 60 anos houve um aumento de mais de sete vezes no consumo, enquanto a população somente dobrou. E onde a população está crescendo mais? Nas cidades, onde há uma grande concentração de pessoas. Isso requer infra-estrutura, mesmo que você tenha água numa vasta região. Só que as cidades crescem sem o devido cuidado com o saneamento básico, sem planejamento e com a poluição de suas fontes (NATAL É UM BOM EXEMPLO DISSO). Garantir água, em especial nas grandes cidades, nos países em desenvolvimento, configura um dos grandes desafios do século.


Idec: A Lei de Saneamento inclui uma determinação para que exista mais planejamento. Ela mudou alguma coisa?
MW: Ela ainda não trouxe mudanças, pelo menos na região metropolitana de São Paulo, que a gente vem acompanhando.


Idec: Por que o consumo de água aumentou tanto?
MW: Uma das primeiras razões é que para atender a esse aumento da população, é preciso aumentar a produção de alimentos. E a agricultura é um dos grandes consumidores e desperdiçadores de água. Chega-se, em alguns formatos de irrigação, a perdas superiores a 70%. Num balanço bem genérico dos três grandes usos da água, 70% vão para a agricultura, 20%, para a indústria, e 10%, para o abastecimento. Também houve um aumento relacionado a diversos processos produtivos que consomem muita água, assim como um aumento da poluição.


Idec: A poluição tem a ver com a forma como a água é usada?
MW: Sim, o próprio uso detona aquela fonte e você tem que buscar outras. Isso aumenta o consumo como um todo. Na década de 70, a região metropolitana de São Paulo praticamente duplicou a quantidade de água disponível para abastecimento, por meio da construção do sistema [de abastecimento público] Cantareira. Criou-se uma disponibilidade enorme com a construção de um grande sistema, e a quantidade de água retirada aumentou. Ao mesmo tempo, algumas fontes ficaram inviabilizadas. Hoje, praticamente todos os rios que nascem ou passam pela região metropolitana estão poluídos. O uso prioritário dos rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros é a diluição de esgotos e a contenção de enchentes.


Idec: De acordo com o estudo do ISA, em São Paulo consome-se até 500 litros per capita, dependendo do bairro. É um índice elevadíssimo, considerando-se que a Organização das Nações Unidas (ONU) propõe um consumo médio de 110 litros ao dia. Como o consumidor pode se limitar a essa recomendação?
MW: Geralmente essas áreas são mais densas e com muitos prédios. Uma de nossas primeiras constatações é que, diferentemente do que ocorre com a conta de luz, quem mora em prédio não tem nenhuma conexão com seu consumo de água. É um dado geral na conta do condomínio, que muitas vezes, dependendo da administradora ou do síndico, nem é muito transparente. Por outro lado, quando a gente recebe aquela conta de luz muito mais cara, diz... opa, o que está acontecendo? Foi algum curto-circuito, quem está usando muito...? Segunda constatação: há apartamentos que passam anos com vazamentos. Muitas vezes, uma torneira pingando pode significar um grande consumo no fim do mês. Uma descarga com um pequeno fio de água vazando gera uma enorme perda. A terceira constatação é sobre os hábitos, que podem inclusive ser relacionados com os hábitos de economia de luz. Seja com o banho mais rápido no chuveiro elétrico, seja na quantidade de máquinas que você enche por semana para lavar a roupa. Até [mudança de] hábitos que as pessoas ainda têm, como fazer a barba ou escovar os dentes com a torneira ligada. Mesmo os aquecedores a gás ou solares, que demoram mais para esquentar a água, provocam uma grande perda. Além disso, os prédios têm uma área comum, em que normalmente se gasta uma quantidade considerável de água, devido ao hábito totalmente condenável de usar a mangueira para varrer a calçada ou lavar a garagem (MEUS VIZINHOS TEM ESTE PÉSSIMO HÁBITO).


Idec: Como anda a discussão de tornar individual a conta da água?
MW: Existe legislação regulamentando o hidrômetro individualizado para novos apartamentos. É caro de se fazer nos apartamentos antigos. Mas vale a pena discutir em quanto tempo a economia de água, em função dos novos hábitos, paga o investimento. A gente está fazendo uma pesquisa nesse sentido. O ISA vai lançar, provavelmente na comemoração do Dia da Água, uma cartilha voltada para os prédios com informações sobre como diagnosticar o consumo e um cardápio de ações possíveis. Desde a compensação até a mais radical delas, a troca dos hidrômetros. E também a implantação da captação de água pluvial, que pode ser usada para molhar as plantas ou lavar a garagem. Estamos numa região que tem baixíssima disponibilidade de água e problemas sérios de contaminação de mananciais. Então a gente tem que buscar água fora e gastar muito dinheiro para tratar a água poluída. O tratamento da água da Guarapiranga [um dos principais mananciais de São Paulo] é o mais caro do Brasil. Após todo esse investimento, você usa essa água que precisa atender a parâmetros de potabilidade para lavar garagem? É um desperdício. Deixar de usar água potável para lavar calçada com mangueira é um aprendizado que as grandes cidades do Brasil terão de ter rapidamente. A região metropolitana de São Paulo tem menos água por habitante do que estados como Pernambuco, em termos relativos (EM NATAL SE LAVA GARAGEM, CALÇADA E CARRO COM ÁGUA MINERAL, VÊ SE PODE!).


Idec: Vocês falam em água pluvial...
MW: Água pluvial ou de reuso do próprio prédio ou apartamento. Se o seu aquecimento é a gás, enquanto aquela água não esquenta, você pode recolhê-la em um balde e depois usar para dar descarga ou molhar as plantas. No Japão já há lugares com três reutilizações de água num mesmo edifício.


Idec: Na sua opinião, com informação e conscientização é possível chegar lá, ou é preciso adotar medidas como o aumento do preço da água e multas pelo mau uso?
MW: A gente acredita muito na conscientização e na educação para um bom uso. Acho que já muda tudo, para quem está em São Paulo, saber que está num lugar que tem pouca água. Conscientizar para o uso racional não é só aprender a usar no dia-a-dia. É ser mais crítico, por exemplo, com a forma como a Sabesp [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo] usa a água. A empresa desperdiça hoje, no município de São Paulo, 30% em relação ao que produz. Isso é mais do que a Guarapiranga produz. É água pra mais de 5 milhões de pessoas. O Brasil perde uma quantidade de água que poderia abastecer 38 milhões de pessoas. Isso equivale à Argentina inteira.


Idec: Existe um grande número de pessoas que utilizam o poço artesiano?
MW: Esse é um dado difícil de controlar. Há muitos poços irregulares em São Paulo, inclusive com risco de contaminação porque a gente está numa bacia muito urbanizada. O DAEE [Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado] tem um cadastro, mas estima que o número real de poços é mais que o dobro. O poço artesiano parece uma grande jogada. Mas o fato de haver uma grande parte deles sem controle pode gerar danos muito graves para a cidade. A Cidade do México tem áreas em que, em função da retirada demasiada de água subterrânea, o terreno está afundando. Há lugares com afundamento de mais de 20 metros.


Idec: Existe alguma campanha relevante sobre o consumo racional de água? Pequenos cartazes em sanitários de uso público talvez não bastem.
MW: A principal fonte de recursos da Sabesp é o abastecimento de água. Então como ela vai incentivar as pessoas a consumirem menos? Faltam campanhas permanentes de educação sobre o uso adequado da água. Isso inclui consumo no dia-a-dia, maior massa crítica em relação à poluição, maior fiscalização dos usos indevidos, mais transparência na informação sobre a qualidade e a quantidade de água disponível. Essa é a grande lacuna.


Idec: Mesmo no verão, não faltam campanhas de mais magnitude?
MW: Há quatro anos a região metropolitana chegou a um momento muito crítico do ponto de vista do abastecimento. O sistema Cantareira, que abastece 9 milhões de pessoas, ficou praticamente seco, com um risco muito grande de racionamento.


Idec: Mas na periferia já existe racionamento.
MW: Na periferia existe um racionamento constante. Seja pela distância, seja pela precariedade da ocupação, existem lugares em que a água falta dia sim, dia também. Uma coisa é a situação de Higienópolis, outra é a do Jardim Vera Cruz, na beira da Guarapiranga.


Idec: De acordo com a pesquisa do ISA, na Amazônia estão as capitais com o pior fornecimento de água e coleta de esgoto. Você falou sobre a cultura da abundância. Há mais fatores que dificultam o fornecimento desses serviços tão básicos?
MW: Fica claro que não existe prioridade de investimento. O acesso à água de boa qualidade diminui muito a mortalidade infantil. Existem estudos que fazem o balanço de que cada real investido em saneamento corresponde a quatro reais economizados em saúde. Os dados que você pode ver no estudo dizem respeito às capitais. São as cidades que têm mais dinheiro, onde mora o governador, normalmente. Mas quando a gente olha uma cidade do Norte, ainda há padrões muito baixos. Porto Velho atende 30% da população, Rio Branco, 56%, Macapá, 58%. Os índices são muito inferiores à média do Brasil, de 90%. Fora Palmas, que é uma cidade planejada, e Boa Vista, todas as outras não alcançam a média. Isso fica mais claro ainda na hora em que a gente olha a situação de perdas nessas capitais. Porto Velho perde 78% da água na rede de distribuição. Manaus, 52%. Não é uma questão de falta d'água. É uma questão de não ter prioridade nenhuma [para o tema]. Vale olhar também a situação dos esgotos. É importante não confundir coleta com tratamento. Quando você olha a coleta no Norte, é sofrível. E o melhor índice de tratamento do Brasil está em Curitiba, com 70%.


Idec: Ou seja, ainda faltam 30%.
MW: Ainda. O que acontece com todo o esgoto que é coletado? Vai para os corpos d'água. A fonte de poluição das águas no Brasil é o esgoto doméstico. E são águas importantes, seja dos próprios mananciais que abastecem as cidades, seja de rios superimportantes. O próprio Amazonas, que abastece Macapá, mais o Madeira, o São Francisco... são todos rios à beira de grandes cidades.


Idec: Qual é a grande conclusão que você tira sobre o uso da água nas capitais do Brasil?
MW: O ISA trabalha há dez anos com os mananciais da região metropolitana de São Paulo. A situação da disponibilidade de água para o abastecimento aqui já é muito grave, e tende a piorar. A análise da situação das outras capitais mostra que isso não é uma exceção, infelizmente. A intenção de um estudo como esse é jogar luz sobre essa questão e começar a fomentar que políticas mais adequadas, não só de contenção de desperdício, mas também de universalização do acesso à água de boa qualidade e da proteção das fontes de água, comecem a ser instaladas Brasil afora. Uma vez que é inadmissível que o Brasil comece a se transformar de país dos rios, em país dos esgotos. Essa é a grande conclusão. O conflito pela água só vai aumentar.
Fonte: Campanha do ISA "De Olho nos Mananciais" (http://www.mananciais.org.br/).

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